Companhia de Transportes Goyana
1901
Histórico
28/03/1946 - Vamos Lêr !
Por Aurélio Domingues, Ipsis litteris
No ano de 1901, fundou-se a Companhia de Transportes de Goiana na cidade dêsse nome. Foram seus fundadores e incorporadores o advogado Manuel Antônio Pereira Borba, mais tarde (1915) governador de Pernambuco, o engenheiro Edward Johnson, inglês, mas conhecedor das necessidades e dos costumes da região, e o mecânico Henrique Bernardes, homem hábil em vários ofícios e particularmente dotado de uma força física excepcional.
O objetivo da Companhia era, a princípio, o transporte de passageiros e de correspondência postal: o transporte de cargas viria em consequência. Os veículos seriam carros automóveis. Influíra para o nascimento da idéia o uso, já bem espalhado, de bicicletas, na capital do Estado e em localidades no interior, servidos de estradas, como era Goiana.
Era uma iniciativa particular, cheia de esperanças.
As viagens de Goiana ao Recife eram feitas em diligências, veículos no gênero de mala-posta, que, na Europa, em vários países, procedeu os comboios de estrada de ferro. A configuração da caixa da diligência era a de um paralelogramo. Dispunha de dois assentos internos e do assento da boléia. Em cada qual deles viajava, ordinariamente, três pessoas. Se eram indivíduos gordos, tinham de viajar “apertados”. A diligência era puxada por três cavalos: dois atrelados à lança e um atrelado a um balancim. Partia de Goiana às quintas-feiras, entre duas e três horas da tarde. Pernoitava, para dar descanso aos animais, em meio do caminho, numa estalagem, e chegava, no dia seguinte, às sete ou oito horas da manhã, em Olinda, ponto terminal da viagem de onde os passageiros em meia hora, se transportavam para o Recife, num trem urbano. Era cerca de vinte horas de viagem, ora no povoado do Pasmado, ora no lugarejo Tabatinga, ora na vila de Igaraçú. De volta, a diligência partia de Olinda, no sábado imediato; pelas quatro horas da tarde, fazia o mesmo trajeto e, observado o mesmo repouso a meio caminho, chegava em Goiana no domingo, pela manhã.
Essas viagens ofereciam sempre coloridos pitorescos, que lhes aumentavam os incidentes ou a monotonia. A alusão aqui a esses coloridos far-me-ia afastar do objeto deste artigo.
Os incorporadores da Companhia de Transportes de Goiana fizeram, no mesmo ano de 1901, aquisição de um carro auto-ônibus, mandado vir da França, dos fabricantes “Panhard et Levasseur”.
As referidas viagens poderiam ser agora feitas diretamente e num tempo mínimo de quatro horas. Era uma grande vantagem ganha sobre as diligências, era um grande avanço no tempo. Poder-se-ia “tomar café em Goiana e ir almoçar no Recife”.
Sessenta quilômetros! Em 1901! No Nordeste do Brasil !
As experiências feitas com o carro, ao ser recebido, armado e posto em movimento por Edward Johnson e Henrique Bernardes, foram satisfatórias.
Mas o veículo era pesado, era dos primeiros construídos – e para as estradas da França. Suas rodas eram revestidas de borracha massiça. A estrada de Goiana oferecia rampas muito fortes, tais a de Aratáca e a de Cagafogo. E, como seu traçado cortava uma região próxima do litoral, havia, aqui e ali, trechos de areia frouxa, onde as rodas do carro se enterravam e somente à custa de grandes esforços e perda de tempo, podiam ser libertadas.
Depois de algumas viagens, levadas a cabo graças à força de vontade dos incorporadores da empresa, em particular de Henrique Bernardes, motorista do carro começaram as grandes dificuldades da Companhia, que não dispunha de capitais bastantes. Os poderes públicos, municipais e estaduais, mostraram-se indiferentes à sorte da empresa. Desgraçadamente – como ainda hoje sucede em casos tais – meteu-se no meio a política. À parte o inglês, os incorporadores e subscritores da Companhia eram “gente da oposição”. As dificuldades foram aumentando, inclusive as resultantes do gasto do veículo. Para encurtar razões, a empresa faliu de inanição. Tive diante dos olhos e li-a –e tenho pena de não havê-la copiado – a ata de sua liquidação, na qual ficou lavrado o protesto dos presentes à última reunião da assembleia de acionistas, contra o descaso, ou má vontade oficial, que os fazia fracassar, quando – gente mais sentimental que oposicionista – nutriam esperanças de realizar um progresso para o país.
Somente Mr. Edward Johnson, não compreendendo bem o sentido do procedimento dos nossos dirigentes da coisa pública – ria-se...
Tive a oportunidade de viajar no carro auto-ônibus da efêmera Companhia de Transportes de Goiana. Sou ainda uma testemunha viva de tudo – depois de quarenta e cinco anos! Mortos são os que incorporaram a malfadada empresa e, suponho, todos os seus subscritores de capital.
Guardei até agora uma fotografia daquele carro: deu-ma Henrique Bernardes, falecido já há quase dez anos. Foi dessa fotografia que se obteve a ilustração inserida neste artigo. Não foi fácil sua obtenção para se conseguir a gravura necessária. Havia sido tirada por amador, ao ar livre, sem o concurso decerto, da técnica de hoje, e a ação do tempo amarelecera-a tanto que não era mais possível reconhecer as pessoas fotografadas.
Foi o fotógrafo Carlos, no sétimo andar do edifício “Rex”, que fêz com vantagem, a devida reprodução, graças ao emprego da chapa “Process”.
O que o leitor vê na ilustração é uma aspecto do pequeno povoado de Pasmado, situado à margem da velha estrada, entre Goiana e Iguaraçú, e ao qual já aludimos, linhas atrás, de passagem e ligeiramente. Vale recordar aqui que Pasmado foi notável outrora pelos hábeis ferreiros, fabricantes de excelentes foices e também de famosas facas de ponta ...
“Ah, uma faca de Pasmado !” – proclamavam, entre si, os facínoras pernambucanos, não menos famosos.
À esquerda, na ilustração, vê-se o carro auto-ônibus, à cuja roda dianteira está encostado Henrique Bernardes, bem reconhecido de mim, agora, depois da reprodução da fotografia. As demais figuras, três delas também por mim reconhecidas, são de comerciantes e talvez alguns proprietários rurais.
Enfim, quando, em 1901, aquêle auto-ônibus teve de ser despachado na alfândega de Pernambuco. Alí, não souberam como taxar a mercadoria: não estava classificada nas tarifas aduaneiras. A inspetoria da alfândega dirigiu consultas às inspetorias das alfândegas do Rio de Janeiro e Santos. De uma e de outra foi respondido que ali ainda não havia sido despachado artigo similar...
Pelo que, podemos afirmar, aquêle foi o primeiro carro automóvel que chegou ao Brasil e aqui trafegou.
E Henrique Bernardes, que o dirigia, foi o primeiro motorista brasileiro.
Panhard et Levasseur. Primeiro auto-ônibus do Brasil. Linha Goiana-Recife (1901). Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem em Pasmado, município de Itapissuma, hoje localizada às margens da rodovia BR-101, no entroncamento com a rodovia PE-041
Panhard et Levasseur
REFERÊNCIAS:
DOMINGUES, Aurélio. Vamos Lêr ! Rio de Janeiro. 28 março 1946. p.30.